
Por Camila Mazzanti
Os mitos são uma forma que as sociedades encontraram, através dos tempos, de exprimirem seus paradoxos, dúvidas, reflexões existenciais por meio de contos. Eles buscam explicar os principais acontecimentos da vida: fenômenos naturais, origens do homem e do mundo através de deuses, semideuses e heróis. São portadores de conhecimentos implícitos que são vitais e dão sentido a determinados aspectos da vida.
A identificação com essas histórias ocorre porque eles se expressam em uma dimensão arquetípica, universal, fazendo com que suas mensagens sejam atuais.
O arquétipo, descrito de forma bem simples, é um tipo de energia essencial que frequententemente interage com o inconsciente coletivo, local onde estão registradas todas as experiências humanas, dessa forma o mito é capaz de “ativar” em nós temáticas comuns a toda a humanidade.
O mito que nos deixa a reflexão de hoje é o mito do curador ferido que conta a história do centauro Quiron, um ser metade humano e metade cavalo. Ele era imortal, possuidor de vários conhecimentos e dentre eles a medicina. Um certo dia Quiron é atingido por uma flecha que continha o mais mortal dos venenos, mas como sua imortalidade o impedia de morrer, a flecha causou uma ferida que nunca cicatrizava, causando uma dor sem fim.
Imerso na dor, o imortal Quíron procura desesperadamente preparar algum remédio que cure sua ferida. Ironicamente, porém, quanto mais busca uma fórmula eficaz para si, mais ele encontra soluções para as enfermidades de outras pessoas. Daí ser ele passa a ser chamado de Curador ferido. Em suma, a partir dessa experiência dolorosa, Quíron torna- se capaz de se sensibilizar com a dor dos demais, tornando-se um sábio curador.
O arquétipo do curador ferido evoca a temática do processo saúde doença, o “curador” e a “ferida”, mostrando uma importante dualidade. Quiron, um ser imortal, conhecido pelo seu dom da medicina, pela primeira vez, precisa refletir sobre a sua ferida e ao buscar a cura para ela, encontra para as chagas dos outros. É ao mesmo tempo o curador e o ferido. Exercita simultaneamente o autoconhecimento e a empatia.
A ferida representa a limitação e entra em constante contraponto com a imortalidade que representa o infinito de possibilidades. Ao deslocarmos esse simbolismo às situações de hospitalização, por exemplo, fica claro que a polaridade arquetípica de “curador” é representada pela figura do médico em conjunto com a equipe de saúde e o “ferido” no paciente.
Mesmo que fiquem claras as disposições das polaridades do arquétipo do curador ferido, Guggenbuhl-Craig(1978) menciona que, o sujeito, ao se identificar de maneira consciente com uma das polaridades, consequentemente se identificará de forma inconsciente com a polaridade oposta. Exemplificando, o paciente, que está de maneira consciente identificado com o “ferido” guarda no seu inconsciente a identificação com o “curador”. A equipe de saúde, identifica-se conscientemente com o papel de “curador” e inconscientemente com o “ferido”.
Entender essa dinâmica é importante pois na identificação inconsciente que habitam as ferramentas necessárias ao progresso. Vamos aos exemplos, no inconsciente do paciente adoentado habita o “curador” que traz em seu simbólico o potencial de cura. No inconsciente dos profissionais da saúde habita o “ferido” ou a “ferida” que evoca questões como a mortalidade, a humanidade e seus limites.
Como toda dinâmica que se polariza, o saudável é a integração dos polos, que é feita através de tomada de consciência e reflexão sobre as temáticas.
Torres (2018) diz que a “humildade é uma palavra-chave na vivência orquestrada pelo arquétipo do curador-ferido. Não é possível controlar nem conduzir alguns processos de cicatrização e regeneração: eles têm seu próprio tempo, cabe apenas observá-los, aguardá-los e muitas vezes admirá-los. A cura possível virá no tempo possível, e é preciso aprender a ficar em paz com essa realidade. A palavra aceitação também tem um lugar cativo nesse processo. Algo acontecerá de dentro para fora, e cabe apenas aceitar”.
A verdadeira cura só pode acontecer quando o paciente entra em contato com seu “médico interior” e dele recebe ajuda. E isto só pode se dar caso sejam retiradas as projeções feitas sobre a persona do médico. Para tanto, é necessário que o médico entre em contato com o seu próprio lado ferido.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
TORRES, Renata Ferraz. O curador-ferido e a individuação. Junguiana, São Paulo , v. 36, n. 1, p. 49-58, 2018 . Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-08252018000100008&lng=pt&nrm=iso>. acessos em 16 mar. 2020.
Moraes, Fabricio Fonseca. Algumas palavras sobre o curador-ferido. Artigo de internet:http://www.psicologiaanalitica.com/algumas-palavras-sobre-o-curador-ferido/ , 2012.
GROESBECK, C. J. A imagem arquetípica do médico ferido. Junguiana, v. 1, p. 72-96, 1983.